O Globo
Ontem chegou ao fim uma jornada de sete
anos, iniciada quando o Brasil venceu a disputa para sediar a Copa de
2014. Foi uma viagem cheia de percalços, com altos e baixos, e um
desfecho muito ruim para o futebol brasileiro. A seleção não chegou ao
hexa, e assim não pôde exorcizar 1950 no mesmo Maracanã da derrota
histórica de há 64 anos.
E os sete gols sofridos na semifinal com a
Alemanha ficarão como dolorosa marca nos cem anos de seleção
brasileira. O estádio, renovado, coloca, porém, no currículo a honra de
passar a ser o segundo do mundo, ao lado do mexicano Asteca, a servir de
palco por duas vezes a uma final de Copa.
Adicione-se, ainda, a qualquer balanço de
saldos do evento a enorme exposição que teve o Brasil nos meios de
comunicação globais, ajuda incalculável na atração de viajantes. Vai
caber à indústria do turismo cativá-los.
No muito que se disse sobre a
catastrófica derrota da seleção no Mineirão, identificaram-se entre as
raízes da humilhação imposta pelo time alemão algumas facetas observadas
na comissão técnica, mas que também fazem parte da vida pública
brasileira: a arrogância, a empáfia, o ufanismo, a autossuficiência.
O projeto da Copa começou com alguma
contaminação desses ingredientes. O então presidente Lula, lembre-se,
desejava um número de cidades-sede superior às 12 do projeto final. E
ficou provado que, se a Copa de 2014 tivesse se limitado a menos
estados, com melhores condições de infraestrutura, o custo final para o
contribuinte teria ficado menor, sem que o evento perdesse o brilho que
teve. Além de haver uma quantidade menor de obras, um flanco vulnerável
da Copa, como se confirmou.
Animal político, Lula pode ter percebido
as oportunidades que o torneio daria, em ano eleitoral, para que ele
desfilasse ao lado da candidata à reeleição Dilma Rousseff em estádios
novos ou reformados. Mas, antes, precisava eleger a ministra em 2010.
Conseguiu.
Trapaças da vida real não o deixaram dar o
fecho neste plano de rara antevisão política. A inflação, a
impopularidade em alta, as vaias impediram-no. E, no fim, a própria
derrota da seleção, e da maneira como ocorreu, foi tremendo gol contra
os planos de marquetagem político-eleitoral.
Mas a Copa foi um sucesso. Naquilo que
dependeu do futebol e do povo brasileiro. Houve ótimos jogos, com alta
média de gols — infelizmente, com a colaboração da defesa brasileira no
jogo com a Alemanha — e, para injetar mais emoção, seleções sem maior
tradição brilharam, como Costa Rica, duro adversário da forte Holanda
nas quartas de final. Foi derrotada apenas nos pênaltis.
A Colômbia, com folha corrida no esporte,
terminou sendo difícil adversário do Brasil na disputa por uma vaga na
semifinal. O Chile, com tradição, outro obstáculo à seleção brasileira,
veio com o melhor time das últimas Copas. Perdeu nos pênaltis, mas quase
eliminou o Brasil, também nas quartas, no último minuto da prorrogação.
Ficou a percepção de que a emigração de
atletas de todos os continentes para a Europa, o mais forte centro
mundial do futebol, tende a nivelar a qualidade dos jogadores do ponto
de vista do condicionamento físico, conhecimento de táticas etc. —
africanos, asiáticos, de onde sejam.
O sucesso da Copa também foi devido à
simpatia e à hospitalidade dos brasileiros. O estrangeiro é recebido com
alegria por uma cultura que gosta da diversidade — ela própria
fermentada na miscigenação. As Fan Fests espalhadas pelas cidades-sede
viraram caldeirões de confraternização.
Foi assim desde o começo. E os grupos
minoritários radicais, donos da palavra de ordem “não vai ter Copa”,
logo perceberam que o melhor seria recolher as faixas e guardar capuzes e
máscaras.
A imprensa estrangeira, antes cética,
passou a registrar a boa qualidade do evento. Simon Kuper, da revista do
jornal inglês “Financial Times”, escreveu um artigo sob o título “Por
que o Brasil já ganhou”. Veterano em Copas, Simon lembrou que antes de
sair para a viagem recebeu o conselho da mulher: “Não vá ser morto.”
Registrou saber das altas taxas de
homicídio no país, mas saudou a segurança nas áreas em que transitavam
os visitantes. “Esta é uma Copa sem medo.” Kuper gostou do que viu, de
Manaus a Copacabana. Na Copa de 2002, recorda que, no Japão, todos eram
bem-educados. E no Brasil, mesmo o policial “afaga amigavelmente suas
costas quando você passa”, se você for “um estrangeiro branco, de classe
média”.
Para ele, esta foi a melhor das Copas em
que trabalhou, desde 1990. Deu certo, portanto, o plano de contingência
montado pelos governos para criar seguras zonas de exclusão em estádios,
adjacências e áreas de circulação de visitantes, Fan Fests, vizinhanças
e bairros turísticos. Decisão correta.
Porém, a outra face de medidas como esta é
que o Brasil, diante das deficiências que tem, as quais não consegue
resolver — mesmo, no caso da Copa, com sete anos para equacioná-las —,
precisa se valer de grandes planos de emergência. Eles sempre são
necessários em qualquer país do mundo, mesmo o desenvolvido, mas a
diferença está na dimensão. A segurança continua precária?
Exército nas ruas durante o evento. Virou
registro histórico o carro de combate Urutu estacionado à frente da
subida da Rocinha na Rio-92. Passado o evento, o tanque foi embora e os
traficantes voltaram à rotina de violência.
Os aeroportos também foram uma surpresa
positiva. O índice de atrasos chegou a 7,3%, contra 8,3%, em todo 2013,
nos países da União Europeia. Também aqui, funcionou a improvisação,
porque, diante de tamanha demora na passagem da administração de grandes
aeroportos à iniciativa privada, por obtusidade ideológica, a saída, em
vários casos, foi também o jeitinho — terminais improvisados etc.
Já tinha sido previsto que não haveria
maiores dificuldades nos estádios, apesar dos atrasos. Elas estariam
fora deles. Dados do próprio Ministério do Planejamento: apenas 24 das
70 obras de mobilidade urbana financiadas com recursos federais ficaram
prontas. Ou seja, só 30%. Grande parte do legado para a população ainda
está pelo caminho.
Mais soluções “meia-boca” para contornar o
obstáculo: decretar feriado nas cidades-sede em dia de jogo. Com menos
veículos e pessoas nas ruas, a falta de estrutura de transporte público
condizente faz menos estragos.
O Brasil mostrou a sua cara: festeiro,
alegre e hospitaleiro, mas incompetente em planejamento, administração
de custos — sem falar em superfaturamentos, outro esporte nacional — e
em gerenciamento de obras. Resta uma tênue esperança de que alguma lição
tenha sido aprendida com vistas às Olimpíadas do Rio, daqui a dois
anos. Mas o tempo é curto.
Criou-se, durante um mês, uma espécie de
Brasil de fantasia: segurança extrema, feriados, menos dias de trabalho.
A Copa, indiscutivelmente, foi um sucesso. Mas, a partir de amanhã,
volta a dura realidade do cotidiano.