O Papa Chico visto por Leonardo Boff e Ivone Gebara.
Não há nenhum dúvida quanto à figura do Papa Chico,
entronizado há alguns dias em Roma – o novo chefe da Igreja Católica é
simpático, tem carisma, sua linguagem direta e calorosa é entendida
imediatamente pelos fiéis e sua maneira afetuosa no encontro com as
pessoas já conquistaram católicos e não católicos, reação ainda mais
viva pelo contraste com o Papa Bento XVI, distante e reservado.
Compreensível, portanto, o entusiasmo do ex-padre Leonardo Boff, um
dos ardorosos defensores da teologia da libertação, desde os fins do
anos 60 e sob a ditadura brasileira, o que lhe valeu ter sido reduzido
ao silêncio, proibido de se manifestar e de ensinar teologia, pelo Papa
polonês, João Paulo II. Uma severa punição parecida com a aplicada ao
teólogo alemão Hans Kung que, igualmente divergia das linhas mestres da
Cúria romana, ambos entusiastas do Concílio do Vaticano II. Boff
criticava a esclerose teológica da Igreja e seu isolamento da realidade
do mundo.
Leonardo Boff, com doutorado em teologia na Alemanha e falando
perfeitamente a língua do país, sempre bem recebido pelos alemães, é
frequentemente convidado por organizações progressistas de católicos
praticantes mas dissidentes da linha da Igreja, e, por isso, a revista
Der Spiegel quis logo saber sua opinião sobre o novo chefe da Igreja e
sobre as acusações publicadas, quanto a uma cumplicidade do cardeal
Bergoglio com as ditaduras argentinas. A entrevista foi logo reproduzida
em outros países e nela, Boff afirma haver um clima revolucionário em
Roma.
O Boff de hoje continua defendendo a teologia da libertação mas ela
inclui uma visão ecológica de defesa do nosso planeta, para que a vida
humana não desapareça. E, num de seus muitos escritos, ele previa o
surgimento da mesma cepa, de movimentos libertários diversos, fôssem
feministas, indianistas, pela libertação real dos negros e pela defesa
do meio-ambiente. Nisso se poderia incluir, por analogia, a eclosão do
movimento libertário pelos homossexuais, de nossa época.
Não sendo mais padre, casado, Boff pode se aventurar pelo campo das
heresias, sem receio de ser excomungado, porque sabe haver latente na
Igreja o inconformismo de católicos progressistas, cujo credo não se
fecha na ortodoxia de Roma e é arejado pelas correntes modernas
animadoras de uma visão teológica social e ecológica do mundo e da
sociedade.
Mas por que Boff defende o Papa Chico no episódio argentino ? Nisso,
ele se refere ao premio Nobel da paz, o pianista Adolfo Esquivel,
segundo o qual “houve bispos cúmplices da ditadura argentina, mas entre
eles não estava Bergoglio” e diz ter conhecido um dos padres jesuítas
“denunciados” por Bergoglio (Orlando Yorio), sem que ele jamais tivesse
feito tais denúncias.
Boff prefere enterrar o passado, na expectativa de grandes reformas
dentro da Igreja, envolvendo o celibato clerical, o uso dos
anticoncepcionais e o papel das mulheres, a serem feitas pelo novo Papa,
mais uma descentralização da Igreja. Mero sonho de Boff ? Logo
saberemos, quando for escolhido o secretário-geral da Cúria – do qual
dependerão as transformações, se houver.
Em todo caso, Boff parece impressionado pela humildade do novo Papa,
que rompeu com o luxo e vivia modestamente em Buenos Aires,
encontrando-se frequentemente com os pobres das periferias. Será essa
uma garantia para o surgimento de uma nova Igreja voltada para os pobres
e para a solução dos problemas sociais?
Ivone Gebara não concorda com isso. Também pertencente ao grupo da
teologia da libertação, doutora em Filosofia pela PUCSP e em Ciências
Religiosas pela Universidade de Louvânia, na Bélgica, Ivone vive como
freira da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, no que se chama de
inserção social, numa cidade de Pernambuco. Tinha sido professora no
Instituto de Teologia de Recife, mas ele foi fechado pelo Vaticano em
1999, e pronuncia palestras pelo Brasil e diversos países, sobre uma
visão feminista da teologia da libertação, assim como sobre a
participação social da mulher e dentro da Igreja.
Num artigo publicado na revista católica Adital e reproduzido num
site católico francês progressista Paves, rede católica reformadora,
Ivone Gebara critica o segredo envolvendo a eleição do Papa, o silêncio
da mídia católica sobre as suspeitas envolvendo o cardeal Bergoglio e
sobre suas posições quanto ao casamento para todos e aborto legal.
E suspeita ter havido uma preocupação geopolítica na eleição de um
Papa vindo do Sul, como maneira de impedir certos movimentos vindos
também do Sul, para contrabalançar a influência dos últimos governos
populares latinoamericanos. E, ao contrário do que pensa Boff, ela
imagina que um Papa latinoamericano, será o ideal para obstar as
tendências políticas inovadoras da região com o objetivo de manter
intactas as tradições da família e da propriedade.
Em outras palavras, a Igreja busca descer do pedestal para ser mais
popular, porém sem quebrar com sua hierarquia. “Sair nas ruas para dar
de comer aos pobres e rezar com os presos, tem um lado humanitário, mas
não soluciona o problema da exclusão social existente atualmente em
muitos países do mundo”, diz a freira Ivone Gebara.
O Papa Chico poderá com seu sorriso e seu carisma mudar dogmas e
comportamentos seculares da Igreja católica? Certamente que não, mesmo
porque a Igreja se baseia num livro, a Bíblia, extremamente
fundamentalista e conservador que, só numa exegese liberal se pode dele
excluir os preconceitos contra as mulheres e condenações claras do
homossexualismo, da mesma forma como, no passado ainda recente,
justificava a escravidão e o apartheid sulafricano.
Rui Martins, jornalista, escritor, líder emigrante, correspondente em Genebra.