Milhões de brasileiros cresceram tutelados pelo tal padrão Globo
de qualidade, decerto um dos ideologemas mais badalados da mídia de
Bruzundanga. A maioria, porém, ignora sob quais condições foi possível
erguer esse ‘mito’, fruto das ótimas relações travadas pela família
Marinho com o regime militar, assim como da generosa bênção do grupo
Time-Life. E que bênção! Entre 1962 e 1966, a corporação estadunidense
“emprestou” mais de US$ 6 milhões à rede do Dr. Roberto para sua
instalação no país (escândalo investigado à época por uma CPI do
Congresso que, mais uma vez, terminou em pizza).
O imbróglio Globo/Time-Life só foi “legalizado” graças à
intervenção dos VIP da ditadura, entre eles os marechais (Castelo
Branco, Costa e Silva) e generais (Geisel, Figueiredo, Golbery) e seus
ministros (Roberto Campos, Euclides Quandt de Oliveira e ACM). Afinal,
foram eles que viabilizaram a difusão do sinal da emissora por 98% do
território nacional: vale lembrar que a Globo foi fundada no
mesmo ano da Embratel (1965), servindo-se da rede de transmissão por
micro-ondas e via satélite que o regime criou e expandir para tornar-se a
cadeia ‘oficial’ do país.
É claro que, à parte o apoio financeiro e técnico da empresa ianque,
que consolidou na TV o conceito de programação em grade até hoje
absoluto na tela (que, no horário nobre, das 18 às 22 h, fixou a tríade
novela, jornal & entretenimento), houve inovações capazes de seduzir
o público, sobretudo na área da teledramaturgia, em que, sem dúvida, a
Vênus Platinada muito se destacou. Afinal de contas, para quem crescera
habituado ao dramalhão mexicano, novelas como Bandeira 2 (1971), O Bem-Amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (na tela em 85, após censura em 75), do saudoso e genial Dias Gomes, eram uma autêntica epifania.
A Globo, de fato, promoveu uma reviravolta no folhetim
eletrônico, sobretudo nos horários das 20 e 22h, em que havia espaço
para uma estética mais realista e certos experimentalismos formais.
Inclua-se, ainda, nessa faixa a produção de obras excepcionais, como Morte e Vida Severina (1981), Grande Sertão: Veredas e O Tempo e o Vento (1985), ou, já no século 21, Os Maias (2001) e Capitu (2008).
É claro que a abordagem de assuntos mais atuais sempre se deu sob a
égide do “realismo estatístico”, com um olho na cena e outro nos índices
de audiência. Assim, temas como violência, drogas e homossexualismo
viriam à tona, mas sob o crivo da modernização conservadora de
Bruzundanga. Por isso, o protesto de uma liga paulista da moral e dos
bons costumes seria capaz de decretar a morte de duas homossexuais em Torre de Babel (1988). Ou, no caso exemplar de O Rei do Gado (1996),
uma líder dos sem-terra deixaria seu movimento para casar-se com o
fazendeiro, anulando-se por completo em uma trama na qual apenas os
proprietários de terra tinham espaço diante das câmeras.
Fã de Jorge Amado, este escriba assiste a Gabriela – mas está consternado com os rumos que a novela tomou. Não há dúvida de que o sucesso cibernético de Avenida Brasil,
cujo início promissor deu lugar ao ritmo histérico e esquizofrênico que
norteia o embate Nina x Carminha (digno do pior dramalhão mexicano),
pesou sobre a direção da novela. Para quem leu o romance, dói constatar
como o conteúdo libertário da narrativa se diluiu em meio a uma teia de
fuxicos sem fim, do Bataclan de Zarolha ao lar (e alcovas) dos
‘coronéis’. Afinal de contas, Gabriela dramatiza a modernização
oligárquica do país, em que o velho coronelato cede passagem a uma
elite empreendedora e ajustada aos novos ritmos do capital: Ramiro
Bastos e Mundinho, de fato, não são inimigos – somente duas faces da
mesma moeda espacial.
O mais triste, porém, é perceber que Nacib virou Tufão,
totalmente idiotizado em cena. Quem o vê assim, jamais imaginaria que
ele participa da vida pública e se posiciona firmemente na luta entre o
‘progresso’ (Mundinho) e o ‘atraso’ (Ramiro). O mesmo vale para Gabriela:
composta como ícone da luta feminina contra a hipocrisia patriarcal,
ela foi aprisionada às malhas do casamento e hoje é uma tosca retirante
que só sabe recitar um mantra (“Seu Nacib é moço bonito!”). Eis aí a qualidade global, leitor…
Por: Luiz Ricardo Leitão é colunista do Brasil de Fato.